sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Oroborus, Fênix, Recomeços e Feliz 2011

Oroborus. Imagem extraída de lunarosa.multiply.com
Bom, quem me conhece sabe que não sou muito dada a romantismos e pieguices, mas acho que nem minha acidez costumeira sai ilesa da influência desse clima de final de ano, bastante propício ao sentimento de reflexão e da sensação da possibilidade de recomeço.

Estava ainda querendo escrever algo para finalizar o conjunto de textos deste ano no blog pois, também quem me conhece, sabe o quanto de carinho tenho por este espaço de expressão e de partilha do que penso.

Conversando com um amigo mui querido sobre isso, ele, que é conhecedor de música e de cultura como poucos, me falou que achava bom o fato de o ano terminar sem ter cumprido todas as metas propostas no início, porque um ano novo que começa oferece essa possibilidade; aí ele falou sobre a oroborus, serpente que engole a própria cauda e é símbolo do ciclo de eterna renovação da vida. Na mesma hora pensei na fênix, pássaro mítico conhecido por seu renascimento das cinzas.

Assim, fiquei pensando no quanto nos é vital essa renovação, de iniciarmos novos ciclos finalizando e fechando outros. O Universo demonstra isso sabiamente todos os dias e noites. Ao mesmo tempo, é interessante observar como há um imaginário coletivo e talvez até arquetípico em que mitologia, religião, espiritualidade e culturas múltiplas se intermisturam e se alimentam de uma maneira fascinante.

Vejam que a oroborus pode ser encontrada em culturas diversas e distantes no tempo e espaço, mas sempre conservando um significado singular de representação do infinito, da imortalidade, da eternidade e do renascimento. Da mesma forma, o renascer é simbolizado pela fênix que, por conta desse conceito de negação da morte, teria sido adotada no início da tradição cristã como representação da ressurreição e da imortalidade. Encontrei, inclusive, várias referências que indicam similaridades entre o mito da fênix e a história do nascimento, morte e ressurreição do Cristo.

Com isso, quero voltar à idéia do quanto nos é vital o ciclo de renovação, a possibilidade de recomeçar, e o quanto isso nos constitui enquanto seres desejosos de podermos reconstruir, refazer, fazer diferente, recompor, enfim, o quanto nos é necessário sonhar, acreditar.

Fênix chinesa. Imagem extraída de sites.google.com
Vejo sem entusiasmo parte dos votos mais comuns entoados nessa época, devidamente inspirados no já tradicional "muito dinheiro no bolso, saúde pra dar e vender", bastante apropriado ao senso prioritariamente materialista da nossa sociedade, mas sem brilho, na minha opinião, quando penso no sentido mais amplo e profundo das possibilidades do que pode renascer em um ano novo, do que pode ser transformado nesse ciclo vital de recomeço.

Assim, desejo saúde a todos nós, não para dar e vender, mas para que se possa viver bem, porque como dizem os antigos, o importante é ter saúde, porque "no resto a gente dá um jeito".

Aos que vivem no mundo adulto, desejo que possamos nos preocupar mais em como usufruir do nosso tempo ocioso do que com a falta de tempo para fazer coisas que gostaríamos.

A quem tem amigos, desejo que sejam felizes como eu sou, porque tenho amigos que amo e que retribuem meu amor. Desejo, assim, que possamos ter muitos e muitos momentos partilhados com amigos queridos, porque existem poucas coisas tão prazerosas quanto viver perto de amigos verdadeiros.

Por fim, desejo aos pais e mães como eu que possamos ter mais e mais momentos com nossos filhotes, muito mais do que eles têm para ficar no computador e/ou na televisão. Desejo, além disso, que saibamos cada vez mais equilibrar muito amor com os limites necessários para que eles cresçam sentindo-se seguros e independentes. Desejo, sobretudo, que tenhamos sabedoria para saber que, mais importante do que roupas e sapatos da moda, brinquedos e tralhas eletrônicas de última geração e afins, o que realmente faz uma criança feliz é carinho e atenção e ser feliz ainda é o que realmente importa na vida. 

Feliz 2011!
Jany



Sites consultados:

http://recantodasletras.uol.com.br
http://somostodosum.ig.com.br
http://www.coacyaba.com.br
http://lunarosa.multiply.com

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Consumismo e outros "ismos", espírito de natal e sociedade contemporânea

Imagem extraída de socialismoclassemedia.tumblr.com
Hã, deixa eu adivinhar, você começou a leitura desse texto influenciado por essa imagem um tanto quanto inadequada ao espírito natalino, certo? Pois bem, achei o subtexto aí contido  bastante oportuno como provocação para o que pretendo desenvolver neste texto.

Na verdade, acho que não é mais novidade e chega mesmo a ser senso comum a discussão sobre o fato de que a data rendeu-se há tempos ao afã do consumismo característico da nossa sociedade exacerbadamente capitalista ou, como diriam alguns revoltados da década de 80, do capitalismo selvagem. Bom, quem me conhece sabe que não faço muito bem as vezes da hipocrisia então não vou polemizar sobre o Natal como se em minha vida nada acontecesse de acordo com alguns dos rituais desse evento cristão consagrado supremo nessa época do ano. Como a maioria das famílias brasileiras com formação católico-cristã, ao estar com meus familiares no final de ano, compartilho da clássica ceia de natal, abraço todos retribuindo o Feliz Natal e só não há troca de presentes porque, além de a família ser muito grande, ainda consigo manter meu desprendimento e não comprar presentes, ainda que a contragosto dos meus, sempre inconformados com meu radicalismo pouco adequado para esta época festiva.

Apesar desse comportamento chatinho em relação à compra de presentes, faço papel de boa menina no restante do cerimonial, mas vou segredar para vocês algumas coisinhas que me incomodam.

A primeira delas é essa abordagem do Natal como se todas as pessoas comungassem da mesma crença. Talvez seja ingenuidade de minha parte, mas assim como não somos todos heterossexuais ou brancos também não somos todos cristãos e ainda que o mundo ocidental seja, em teoria, majoritariamente cristão, acho muito estranho que uma sociedade que se pensa civilizada não tenha estratégias que permitam emergir a pluralidade de nossas crenças.

A seguir, me incomoda muito observar o quanto o chamado espírito de natal, que em gênese seria uma referência ao amor e à fraternidade, aparentemente se perdeu em meio às compras em shoppings e ruas lotados de consumidores frenéticos na busca por objetos que imaginam capazes de preencher seus corações e os corações de quem amam com esse ideal de sentimento abstrato de que todos falam e pensam partilhar nessa época.

O intrigante é que não me parece que as pessoas se entristeçam verdadeiramente com cenas que, imagino em minha já conhecida ingenuidade, deveriam entristecer pessoas imbuídas do espírito natalino, afinal, o nascimento do Senhor deveria trazer esse olhar para os que já perderam a esperança e a fé, não é assim?

Mas queiram perdoar a minha falta de compreensão. Talvez eu devesse ser mais razoável porque com tanta correria no final de ano, tantos compromissos e a superlotação cada vez maior de lojas, dificultando a compra dos presentes de Natal,  realmente fica difícil se atentar (quanto mais se entristecer com isso!, vejam a minha falta de bom senso) à grande quantidade de pedintes, crianças inclusive, ou ao aumento visível de pessoas vendendo ou mendigando nos faróis, idosos muitos, a quem parece que a aposentadoria e a família não chegaram após anos de trabalho a fio.

Ora, é muito provável que essas cenas e situações já estejam tão incorporadas ao nosso cotidiano de pessoas que vivem numa grande metrópole que tenhamos chegado à cômoda conclusão de que não podemos mesmo fazer nada, afinal, trata-se de um problema de ordem social muito maior do que pode dar conta a nossa humilde alçada.

De fato, concordo que o número de pessoas que hoje vive nas ruas e das ruas é muito maior do que um sujeito cristão médio empolgado com o Natal poderia prestar atenção em meio ao cotidiano espremido do final de ano e talvez essa nem seja a principal questão séria a ser trazida à baila. Mas
Imagem extraída de http://www.obrainstormer.blogspot.com/
considero que é um bom exemplo, dentre muitos outros, que poderiam ser tratados em um texto como esse, desgostoso e ácido demais para o atual momento de doçura natalina.

Vejam, também não estou remoendo assunto tão batido só para ser estraga-prazeres da alegria dos que sentem dentro de si um diferencial por estarem vivenciando genuinamente o espírito natalino. Contudo, quando nessa época ouço todos os dias apelos comerciais que incitam o consumo pelo consumo ou que relacionam* diretamente o consumo ao bem-estar e à felicidade fico pensando que não é de todo inútil essa reflexão às voltas com nossa imersão nesse confuso misto de individualismo, materialismo, consumismo e suposto amor fraterno que compõem atualmente o espírito natalino.


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*Por exemplo, “Shopping Vila Olímpia, tudo que te faz bem” ou “Pão de Açúcar, lugar de gente feliz”.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Por que traição dói tanto?

Estava às voltas com um texto que pretendo escrever sobre o estudante morto no campus da USP semana passada quando fui atingida por uma história recente de traição. A questão me incomodou de tal forma e me deixou tão impactada que não pude conter meu desejo de passar para a escrita, imediatamente, algumas linhas sobre isso. Como muita coisa nesse blog sai fora de hora mesmo, seguramente ainda volto a minha reflexão sobre a morte do estudante Samuel de Souza.

Cena do filme Edukators, Alemanha, 2004.
Pois bem, como eu dizia, uma história recente de traição me fez pensar um pouco sobre o porquê sofremos tanto quando nos deparamos, muitas vezes não sem surpresa, com a traição de alguém que amamos.

Seria devido à forma como nos relacionamos, ou seja, dentro da tão clássica relação de exclusividade, que quando quebrada nos traz esse sentimento de que fomos traídos? Seria a sensação de que a outra pessoa é melhor que nós, essa sensação vergonhosa de baixa estima? Seria orgulho ferido, por nos sentirmos insuficientes em tudo o que pretendemos contemplar na satisfação pessoal, amorosa e sexual da pessoa com quem estamos? Seria a sensação besta de que perdemos o jogo para alguém?

Realmente não sei, talvez não seja nada disso, sejam outras coisas ou seja um pouco de tudo isso ao mesmo tempo, mas o fato é que tanto homens quanto mulheres ficamos atordoados com uma traição, independente de como consigamos lidar com a dor que isso causa, o fato é que traição causa dor.

O que me impressiona ao pensar nessa questão é como realmente somos complicados porque me parece que, após milhares de anos nos relacionando amorosamente, ainda não conseguimos abrir mão de certos padrões que sabemos não funcionar muito bem. É assim que insistimos, por exemplo, nos pactos de exclusividade eternos, como se fosse possível prever para todo o sempre que jamais nos interessaremos por outras pessoas ao longo de nossas vidas, tão pouco intensas no mundo contemporâneo, não é mesmo?

Vejam, não quero parecer leviana, como se fosse impossível dedicar amor e fidelidade a apenas uma pessoa, mas falo da insanidade existente em muitos relacionamentos amorosos, nos quais a título dessa pretensa exclusividade e fidelidade tenta-se controlar não apenas os atos e a liberdade do outro como também as amizades que pode (ou não) ter, o estilo de vida, em suma, grande parte de suas escolhas, num total desrespeito à privacidade e à individualidade, elementos centrais de nossa dignidade enquanto sujeitos. O mais triste é que, segundo uma grande terapeuta que conheço, esse tipo de descontrole emocional em um relacionamento é bem mais comum do que se imagina para uma sociedade tão democrática, moderna e civilizada quanto a nossa.

Mas suponhamos que o relacionamento seja saudável, que os dois indivíduos envolvidos se respeitam enquanto sujeitos em sua individualidade e liberdade, que escolheram conscientemente estar juntos (sim, porque há pessoas que parecem estar obrigadas a ficar com alguém, como se isso garantisse a felicidade dos filhos, o término das contas e das dívidas ou os bens materiais fossem razão suficiente para abrir mão da própria felicidade) - e que, na consciência dessa escolha e da implicação do que chamo de pacto de exclusividade, entendem que se amam.

Talvez minha impactação com a história que eu soube advenha exatamente do fato de que nada disso garante que a traição não aconteça e, talvez também por isso, a dor e o atordoamento sejam tamanhos. Porque, no fundo, ninguém está preparado para sentir-se enganado, que é basicamente o sentimento gerado por uma traição quando estamos numa relação como a que acabei de citar.

E, nesse sentido, creio que a relação entre traição e sentimento de ter sido enganado pode ser transposta para a maior parte dos relacionamentos, seja de amor, de amizade, fraternal entre pais e filhos, irmãos etc. Ninguém gosta de ser enganado, é ruim sentir, ainda não sendo a verdade, que talvez não sejamos tão importantes quanto gostaríamos para alguém e, ainda que dificilmente seja essa a razão principal de uma traição, é impossível para um espírito magoado compreender o que leva alguém que se ama a cometer um ato de enganação.

Cena do filme Edukators, Alemanha, 2004.
A solução seria o diálogo franco e aberto? Dizer ao outro, no caso de seu amor, que se está interessado numa terceira pessoa, ou que se fará uma escolha não muito aceita para o padrão de educação recebida, no caso dos pais, e assim por diante? A verdade é que, na maior parte dos casos, esse caminho também parece pouco viável. Fico pensando se quando decidi viver minha vida sexual livremente tivesse comunicado aos meus pais o quanto isso talvez tivesse chocado mais do que quando fiquei grávida e optei por não me casar. 

Da mesma forma, vejo o quão difícil e trabalhoso é construir um relacionamento aberto e já presenciei casais genuinamente poliamorísticos com crises por causa de uma terceira pessoa que entrou no relacionamento provocando o sentimento de traição.

De fato, parece muito complicado equacionar amor e liberdade quando penso o quanto de possessividade, insegurança e egoísmo nos constituem enquanto seres humanos complexos e incoerentes na nossa forma de amar e manifestar o amor.

Cena do filme Edukators, Alemanha, 2004.
Se você já leu outros textos deste blog talvez tenha reparado que sempre tento finalizar minhas reflexões com um tipo de 'fechamento'. Pensei bastante e não consegui encontrar nada que fechasse de maneira satisfatória as questões que me trouxeram a esse texto. Talvez seja porque a experiência da dor de uma traição é algo tão particular quanto as possíveis razões que, em nossa dor, podemos especular tentando compreender essa traição. Confesso que jamais consegui compreender bem as traições que sofri ou as que cometi, mas sei que a dor, tanto provocada quanto sentida, só se esvaiu quando foi possível (re)colocar em seu lugar sentimentos de respeito e de amizade.

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Monteiro Lobato, racismo e outras reflexões em meio ao Mês da Consciência Negra

Imagem extraída de www.lidebrasil.com.br
É bem possível que vocês nem desconfiem, mas tentei começar a escrever este texto lá pelo início do mês, quando pipocavam discussões sobre a polêmica em torno do suposto veto ao livro de Monteiro Lobato “Caçadas de Pedrinho” nas escolas públicas.

Contudo,  aparentemente, a discussão esfriou com o indicativo dado pelo Ministro da Educação, Fernando Haddad, de inserir notas explicativas em substituição ao veto, o Dia da Consciência Negra se foi e eu decidi, ainda que nos 48 minutos do segundo tempo, refletir aqui sobre algumas das tantas questões que me chamam a atenção quando se fala em temática racial no Brasil.

Logo que surgiu a polêmica, ouvi na Faculdade de Educação comentários indignados sobre a notícia de que o MEC queria tirar Monteiro Lobato das escolas públicas devido à discussão sobre racismo na obra “Caçadas de Pedrinho”. A discussão que se seguiu entre alguns dos pós-graduandos não me surpreendeu, girando em torno do caráter clássico da obra do autor, de estar situada em outro contexto e de Lobato ser um escritor reconhecido e renomado, além de tantos outros argumentos em defesa de sua obra, afinal, é mesmo indiscutível  a contribuição do escritor para a literatura brasileira em geral e a infantil em particular.

Imagem extraída de www.nacaomestica.org
Ademais, me parece que muitos acadêmicos da área de Língua Portuguesa e Literatura estão mais interessados em reafirmar o caráter clássico, sem dúvida inquestionável de algumas obras, do que debater o como esse caráter clássico está sendo (ou não) apreendido ao longo das décadas pelas diferentes gerações de estudantes.

Bem, se há estudiosos que se eximem do debate, o que esperar do sem número de palpitadores, opinadores e opinantes, brasileiros formados na chamada “democracia racial”? Numa vista rápida d’olhos pelas notícias é possível perceber um pouco da influência dessa formação, quando se vê não apenas a unanimidade do discurso em torno da importância de Lobato - repito, inquestionável - mas sobretudo do esvaziamento do debate que realmente interessa:

Considerando-se o teor racista de expressões adotadas em “Caçadas de Pedrinho”, como trabalhar criticamente a obra, de forma a evitar, por exemplo, “interpretações negativas” e o “reforço de preconceitos”. (Parecer do Conselho Nacional de Educação (CNE), p.4 e p.5).

Bem, aí começa a polêmica discussão porque, primeiramente, a título de defesa do contexto e da forma, muitos não consideram que o conteúdo de “Caçadas” seja racista, a partir de justificativas as mais variadas, que vão desde as bem fundamentadas e coerentes àquelas mais rasas.

Entre as primeiras  estão as que se baseiam na comparação entre as personagens, na intencionalidade de Lobato, no fato de que a “descrição social obedece ao modelo vigente à época” ou no argumento sobre a valorização das personagens negras do livro, visto que Tia Nastácia é uma “divindade criadora” ou ainda que “Tia Nastácia e Tio Barnabé são criações maravilhosas (...) ricas de conhecimentos, doçura e sabedoria”, constituindo-se, portanto, em “personagens negras (...) generosas e lindas”.

Entre as justificativas rasas e irrefletidas estão as do próprio Ministro Haddad, que simplesmente declara "Pessoalmente, não vejo racismo" ou as de um sujeito imbuído pelo suposto saber legitimado por uma série de titulações, um tal de Jorge Maranhão, responsável pelo site A voz do cidadão (vejam a ironia!), que, não contente em achar que na obra não tem racismo, declara irresponsavelmente que “não existe racismo no Brasil”.

Imagem extraída de www.prosaepolitica.com.br
Não bastasse a desqualificação do racismo das expressões de Lobato, o foco da discussão afastou-se ainda mais da questão central do parecer, propositalmente ou por descuido de leitura, por conta do que foi considerado veto e/ou censura à obra, o que causou compreensível furor ao nosso senso democrático, contribuindo bastante para minimizar o exercício de reflexão sobre como poderíamos repensar o uso de um livro importante, mas com expressões pesadas e ofensivas à identidade de crianças negras em formação.

O excelente artigo escrito por Idelber Avelar, mestre em literatura brasileira, além de uma exposição interessante sobre a falsa polêmica em torno do suposto veto, traz para o debate o cerne da questão ao afirmar que a linguagem racista utilizada por Lobato “não vem de um ‘vilão’ da história depois punido, mas é sancionada pela obra, posto que enunciada por Emília, a personagem querida, central, convidativa à identificação”. Nesse sentido, defende que se trata de “um problema nada simples para o educador” lidar com essa situação numa sala de aula com crianças com média de 10, 11 anos e convida os que minimizam a questão a montar e expor um plano de aula a partir disso.

Ora, não é demais lembrar que, ainda que Lobato não tivesse intenção de inferiorizar o negro, para o contexto atual - felizmente - as expressões utilizadas por ele são racistas sim. O problema é que como o debate ficou centrado na polêmica sobre a anti-democracia da censura a Lobato, foram relegadas a segundo plano as discussões sobre como trabalhar esse conteúdo em sala de aula, fundamentais se considerarmos todos os problemas inerentes à educação pública atual e especialmente se se pretende contemplar a multirracialidade na formação de crianças e jovens no ensino básico. Estaria realmente o professor preparado para essa tarefa? E não sejamos ingênuos, trata-se de tarefa muito mais ampla e complexa do que contextualizar historicamente a obra e seu autor.

Posto isso, não considero, contudo, que a obra deve ser banida, como declararam alguns estudiosos militantes do Movimento Negro, porque a meu ver seria uma ação desnecessariamente radical e, além de não gostar de radicalismos extremos de nenhum tipo, não considero que ajudem muito no objetivo a que se propõem, seja ele qual for. Penso que é mais profícuo suscitar e aprofundar o debate em torno, por exemplo, do quanto avançamos em termos de leis e padrões politicamente corretos para um tratamento respeitoso mas, ao mesmo tempo, o quanto o preconceito e o racismo ainda permeiam as relações tanto de forma sutil quanto de maneira escancarada na nossa sociedade.

Haja visto, por exemplo, o desconforto ainda presente no discurso de muitos brasileiros para dizer que alguém é negro, como se isso fosse uma ofensa à pessoa. Observe-se que não é incomum a utilização da terminologia “moreno” para denominar inclusive negros de pele escura, o que me leva sempre a questionar a quê a pessoa está se referindo quando utiliza este termo na minha presença porque, de fato, não compreendo bem o que significa ser “moreno” no Brasil.

Imagem extraída de prosamagica.blogspot.com
Sem dúvida, não será difícil encontrar aqueles que acham não há nada de preconceito embutido no uso do termo “moreno”, afinal, temos várias nuances de cores de pele no Brasil, o que é verdade, mas será mero preciosismo discutir questões como essa? Será que todo mundo que se identifica ou identifica um outro como “moreno” está pensando na nossa tez multicor como algo plural e positivo? Seria mera tendência da moda a ascensão desmedida do uso da chapinha e da escova definitiva para “facilitar a vida” da mulher moderna ou isso reflete a não valorização de nossos cabelos Black porque a sociedade cada vez mais impõe um padrão de embranquecimento forçado? Será mera coincidência que propagandas de marcas caras de carros nunca tem um negro como potencial consumidor ou que as novelas da Rede Globo parecem ter elenco composto em grande parte pela população sueca?

Perdoem a minha falta de delicadeza, mas acho um pouco demais que pessoas que se pensam informadas e conectadas ao mundo não tenham a decência, o cuidado e, principalmente, o interesse em ler um pouco das informações e discussões contidas nos tantos estudos sérios já feitos sobre a temática racial no Brasil antes de sair por aí escrevendo qualquer coisa a respeito de um documento que buscava, especialmente, fazer valer a Resolução que instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (CNE/CP nº 1/2004) - Resolução inclusive ainda não adotada e até mesmo desconhecida em muitas instituições públicas de ensino básico.

É bem verdade que nossa identidade como brasileiros está permeada por tantas nuances de cores, de reflexões, de história e de conflitos que, às vezes, fica difícil nos posicionarmos com segurança indubitável sobre quem realmente somos. Alguns não querem se declarar negros porque defendem conscientemente sua mestiçagem e, por conseguinte, não querem negar sua parte branca constituinte. Outros não querem se declarar mestiços pela força do contexto histórico em que o ser mestiço se aproximaria do ideal branco de ser. Por outro lado, não querer declarar sua cor é uma afronta porque seria não se afirmar ou se identificar com nenhum parâmetro conceitual instituído.

A meu ver, o grande problema está no fato de não discutirmos todas essas questões assumindo a complexidade do que representa a identidade de ser brasileiro. Vejam meu caso, brasileira como a maioria de nós, descendente desse Brasil negro, branco e mestiço: socialmente sou considerada branca, então não posso dizer que sou negra ou mestiça porque pareceria demagogia ou qualquer coisa que o valha. Contudo, além da ascendência negra, também não me penso branca considerando-se toda a discussão em torno do que representa o “ideal branco-europeu” no processo de construção de identidade do brasileiro. Pois bem, se nessa sociedade é um contra-senso eu dizer que sou negra, no meu entendimento, branca também não sou. E como não existe uma categoria criada na qual eu possa me encaixar, inventei uma na qual me sinto confortável em me assumir: sou brasileira não-branca.

Angeli e o Dia da Consciência Negra: dispensa comentários
Bom, para além de todas as provocações, evidentemente, não se trata apenas de como nos vemos, mas talvez muito mais de como os outros nos vêem. Nos dias mesmo que eu estava escrevendo este longo texto, uma amiga comentou que ia à delegacia fazer um B.O. contra o prédio em que ela mora na Vila Mariana, porque era a segunda vez que barravam amigos negros dela na portaria. Ela comentou comigo sobre a primeira vez, em que o amigo negro foi chamado de “moreno”, sendo solicitado a ela que fosse encontrá-lo na portaria (o porteiro achou que o moço era entregador!). Na segunda vez, a amiga negra foi barrada na portaria e perguntado a ela “onde está seu crachá?”. Como assim crachá?  Nunca ouvi dizer que imediatamente ao chegar em um prédio para visitar um amigo você dispõe de um crachá. Talvez devêssemos criar um com alguns dizeres bem malcriados direcionados a pessoas e atitudes racistas como essas.

Minha amiga desabafou, sua amiga sentiu-se profundamente humilhada, mas felizmente ambas tiveram forças para denunciar esse racismo absurdo que ainda acontece todos os dias no nosso Brasil “democraticamente racial”.


Sites consultados:

http://ultimosegundo.ig.com.br/
http://diariodonordeste.globo.com
http://www.folha.uol.com.br
http://www.d24am.com
http://bulevoador.haaan.com
http://nacaomestica.org/blog4/
http://www.bahianoticias.com.br/
http://prosamagica.blogspot.com
http://aruandamundi.ning.com/
http://www.jornaldaimprensa.com.br
http://lidebrasil.com.br

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Oração e egoísmo não combinam

Imagem extraída de http://www.alienado.net/
Desde criança frases de caminhão sempre foram objeto de minha curiosidade e interesse.

São inúmeras as categorias possíveis para agrupar os variados tipos de frases mas, por diferentes razões,  as que mais me marcaram foram aquelas de conteúdo religioso: “Segura na mão de Deus e vai”; ou que remetiam à sabedoria popular: “Vote nas putas porque nos filhos delas não deu certo”; as que buscam afirmar a heterossexualidade do mensageiro:  “Enquanto eu não encontro a mulher certa me divirto com as erradas”, ou ainda aquelas de gosto duvidoso: “Perigo não é um cavalo na pista, é um burro na direção”.

Bem, assim como os motoristas da estrada, os motoristas urbanos também costumam manifestar-se através de imagens e mensagens as mais variadas, que vão desde adesivos de desenhos animados, ícones cinematográficos e dos quadrinhos, frases politicamente corretas no cenário ecológico ou radicais daqueles que praticam esportes de aventura ou mesmo através de frases comuns ao cotidiano do trânsito, tais como “Bebê a Bordo” ou “Cuidado! Eu freio para animais”. Há ainda as que remetem a determinados universos culturais tais como “É nóis” ou, novamente, à sabedoria popular: “Deus deu a vida para que cada um cuide da sua”.

Imagem extraída de www.bloogle-motorizado.blogspot.com
Nada demais até aqui, mesmo as frases escritas com esse português torto não me incomodam, acho que elas expressam a voz de determinados grupos sociais.

Contudo, sempre me incomodo um pouco quando vejo adesivos que me levam a pensar na incoerência humana. São muito comuns os adesivos com a silhueta da Nossa Senhora juntamente com um terço. Mas junto com essa imagem não é incomum vir um motorista fazendo trapalhadas no trânsito como as que já falei aqui anteriormente.

Sim, sim, eu sei que vocês podem achar que estou confundindo as coisas e que, evidentemente, não é porque uma pessoa professa uma crença que está isenta de errar (muito, se me permitem). Assim fosse, não teríamos, historicamente e atualmente,  tantos casos escandalosos envolvendo figuras e instituições religiosas das mais variadas ordens.

Mas vejam, apesar de todos esses escândalos, não acredito que devamos perder de vista que entre errar e abusar do erro tem uma certa distância. E o que presencio muitas vezes são pessoas extremamente desrespeitosas em relação ao outro, não raro colocando a vida de outras pessoas e a deles própria em risco por conta de atitudes no trânsito como as já comentadas neste espaço.

Pode ser ingenuidade de minha parte, mas sempre pensei que pelo menos aquela máxima de amar ao próximo (com todas as implicações que isso tem) quem segue o cristianismo deveria praticar. Me parece um pouco queimar o filme de Jesus ficar por aí com um símbolo cristão no carro e agir assim, com esse desrespeito acintoso aos outros.

Imagem extraída de http://www.emule.com.br/
E por falar em cristianismo, essa semana notei um adesivo novo circulando nos carros na capital paulista. Eu já havia observado antes um ou outro desses adesivos, sem frase alguma ou com alguma coisa referente a formar uma família ou algo assim. Contudo, no carro que vi esses dias estava escrito junto à imagem “Deus proteja minha família”. (grifo meu).

Fiquei um tanto quanto indignada pensando se as outras famílias não merecem ser protegidas também. Imagino que se não for considerado família - então! - nem se fala.

Ora, vocês podem me dizer que aquela família naquele carro estava orando para si, assim como cada família e pessoa pode fazer o mesmo, ficando então todas as famílias e pessoas protegidas. É uma lógica que parece ter sentido, mas será que fazer uma oração é isso?, pedir egoisticamente algo para si e/ou para os seus e ignorar todos os outros?! E aquela essência de todas as filosofias espirituais e espiritualistas  e religiões, independente de credo ou origem, que indicam que a oração deve ser feita mais para agradecer do que pedir ou que a essência da oração deve ser altruísta e não egoísta?!

O interessante é que nenhum desses questionamentos parece mesmo ser objeto de reflexão da maior parte das pessoas, cristãs ou não, que compõem essa sociedade individualista e materialista em que vivemos. Chamou minha atenção, por exemplo, um texto que encontrei quando pesquisava imagens para este post e que versava sobre o perigo desses adesivos porque, tecnicamente, "entregam de bandeja uma família aos sequestradores" já que, segundo a autora, os seqüestradores não precisariam mais ficar vigiando para descobrir se aquela família tem filho ou filha.

Imagem extraída do site
 www.produto.mercadolivre.com
Bom, achei a idéia um pouco exagerada quando penso que a depender do tipo de seqüestro seus executores precisariam de muito mais informações do que um simples adesivo pode oferecer, mas enfim, não sou expert em seqüestros e sempre acho que muitos metropolitanos sofrem um tanto desse excesso de medo comum a quem mora em grandes centros urbanos, justificando a máxima de que todo cuidado é pouco. De qualquer forma, a meu ver isso demonstra em certa medida que o tipo de preocupação presente no cotidiano das classes médias está longe de ser a maneira como fazem suas preces ou se as mesmas estão de acordo com os preceitos gerais orientados pela matriz religiosa a que pertencem.

O fato é que, ou eu estou muito fora da realidade ou Jesus deve estar achando que não conseguiu ensinar nem o básico para muitos dos que se dizem cristãos, porque me parece que oração e egoísmo são coisas que não combinam.

domingo, 7 de novembro de 2010

TV Bus Mídia e Rede Globo nos ônibus em São Paulo: o que o usuário ganha com isso?

Já tem um tempinho que comecei aqui essa reflexão sobre o chamado serviço de mídia móvel no transporte público da capital paulistana, sendo que na primeira parte deste texto foram discutidas algumas questões sobre a inserção de TVs na maior parte dos espaços públicos freqüentados por nós hoje em dia.

Naquela altura, fiquei intrigada quando fiz um trajeto num ônibus que tinha TV: chamou minha atenção tanto a proximidade ostensiva do aparelho ao usuário que tivesse que ficar num determinado local do veículo quanto a programação veiculada, “de qualidade reconhecida no Brasil e no mundo” segundo o site oficial da TV Bus Mídia, empresa de mídia em ônibus responsável pela prestação do serviço.
(www.busmidia.com.br/quemsomos).

Basicamente, a tal programação se limitava a mostrar repetidamente cenas legendadas de todas as novelas globais - imagino que do capítulo daquele dia.

Dêem uma sacada no nível de qualidade da programação oferecida aos usuários - que já têm de enfrentar ônibus lotado, mochilas enormes que atropelam seus braços, tronco e até cabeça, motoristas (não apenas) grosseiros e mal educados, passageiros que não respeitam os assentos reservados, conversas no sense em voz bem alta ao celular, dentre outras coisas.

Vamos a alguns trechos da programação:

  • Magali chama Sofia por seu antigo nome. E a deixa desesperada.
  • Julinho conta o que Osmar pensava sobre Edgar. E o deixa abalado.

Notem que há um ponto entre as duas frases, com o objetivo de proporcionar o que eu chamaria de pausa dramática, seja, para dar um ar de gravidade à situação.

Há o grupo de frases que quando você lê fica se perguntando que importância dramática teriam essas situações na vida real:

  • Viviane pede para Antônia deixá-la levar o chá para Ricardo.
  • Clotilde surpreende Jaqueline com sua eficiência.
  • Edgar encontra Marcela olhando a foto de Renato. 

Há ainda o grupo de legendas que parecem revelar, mais do que o conteúdo dramático do enredo, que as personagens se assemelham a pessoas da vida real

  • Clara se assusta ao quase atropelar Danilo.
  • Felícia fica arrasada quando sua mãe a menospreza. 

Ou seja, imagino que qualquer pessoa se assustaria ao quase atropelar alguém ou que qualquer filha ficaria arrasada se desprezada pela mãe. De fato, ao contrário da qualidade propagandeada pela TV Bus Mídia, o próprio diretor de multiplataforma e promoções da Rede Globo, Jorge Rosa, afirmou que o conteúdo exibido nos ônibus é chamado de embalado, sendo composto por “resumos das quatro principais novelas globais e por notícias frias”.

Pois bem, relatando agora a questão para vocês essa situação pode parecer sem graça, mas o fato é que naquela ocasião causou-me estranheza pensar sobre o porquê de haver TVs com tal programação nos ônibus de São Paulo já que, na minha ingenuidade, por ser transporte público o usuário deveria ser beneficiado.

Fui então pesquisar tentando encontrar que benefícios o usuário teria com isso e descobri que em janeiro deste ano já eram 985 o número de veículos em São Paulo transmitindo conteúdo monopolizado pela TV Bus Mídia, BusTV e TVO. Também descobri que estou equivocada quanto à utilização do termo TV, visto que é uma mídia “criada especialmente para a situação em que o público está dentro do ônibus se deslocando pela cidade”, constituindo-se, segundo o diretor da TVO, em uma mídia móvel digital, engrossando a fileira das mídias ‘out-of-home’, cada vez mais presentes na vida das pessoas.

Independente de ser TV ou mídia móvel, o fato é que desde 2007 a TV Bus Mídia veicula programação nos ônibus de São Paulo. Contudo, a parceria com a Rede Globo permite atualmente à TV Bus Mídia cobrar a bagatela de 140 mil reais pelo tempo de 30 segundos, com direito a veiculação do anúncio em 250 ônibus. Os anunciantes não reclamam, visto que terão espaço em meio a programas “de grande audiência e fidelidade do público brasileiro” e de “grande credibilidade”, além da garantia de atingir a cifra de 6 a 7 milhões de pessoas em um momento de mínima dispersão.
(www.busmidia.com.br/programação)

A SPTrans também fatura, deixando de transferir às empresas de ônibus o equivalente a sete tarifas do transporte público para cada anúncio veiculado em um coletivo.

Como já era de se esperar, parte do faturamento publicitário alcançado pela TV Bus Mídia vai para a Rede Globo. Aliás, para o diretor da BusTV, João Pedro Nogueira Neto, a emissora pode ser anunciante de si mesma nos ônibus. E sem gastar nada com isso.

É interessante observar que na portaria publicada no Diário Oficial consta que o conteúdo transmitido em mídia televisa nos ônibus de São Paulo deverá ser “preferencial para mensagens de caráter institucional, de campanhas educativas e de utilidade pública promovidas pela Prefeitura”.

O projeto chamado de TV em movimento, implantado em Dourados/MS em 2006, também previa, segundo o empresário responsável pela patente no Brasil, Alberto Carlos Sanguine, o investimento em uma programação educativa. “Serão veiculados dicas de segurança, telefones úteis e materiais culturais”, disse ele em entrevista à época da implantação do sistema em Dourados.

Bom, não é algo tão surpreendente descobrir no Brasil o quanto projetos são descaracterizados de sua proposta inicial ao longo de sua implantação e concretização.

Ora, quando comecei este texto expus meu estranhamento quanto ao fato de haver veiculação de programas da Rede Globo no sistema público de transporte. Queria entender que benefício tem o usuário dos coletivos com esse serviço e o que encontrei que chega mais perto disso é uma fala da assessoria de imprensa da SPTrans, que afirma que “o objetivo até o momento é oferecer informação e entretenimento para o usuário do sistema de transporte coletivo da cidade”.

Imagem extraída de http://www.anprotec.org.br/
Pois bem, no tempo razoável que passei dentro do ônibus que tinha TV não vi informação alguma e quanto ao entretenimento, acho que evidenciei aqui alguns elementos que demonstram a natureza da qualidade da programação, bem diferente da alardeada pelas diversas empresas envolvidas na parceria.

Assim, continuo com a impressão de que todo o mundo (empresarial) está ganhando, mas ainda mantenho o questionamento que fiz quando saí do ônibus naquele dia, o que o usuário ganha com isso?


Fontes consultadas:

http://www.direitoacomunicacao.org.br/
http://www.busmidia.com.br/
http://veja.abril.com.br/
http://www.sptrans.com.br/midia/
http://www.estadao.com.br/
www.tresmeios.com.br/
http://www.anprotec.org.br/

terça-feira, 26 de outubro de 2010

O segundo turno das eleições 2010 para Presidente: uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa


Imagem extraída de http://www.conversaafiada.com/
Sala cheia de alunos de pós-graduação em educação. Meu local de trabalho. A poucos dias da eleição a discussão, evidentemente, versa sobre o segundo turno para presidente.

Em meio às declarações indignadas de várias professoras que atuam na rede pública de ensino, inconformadas com o fato de ainda haver professores que votam PSDB - apesar do tratamento ofensivamente sucateante e abandonante dado à educação pelo governo estadual, em São Paulo nas mãos do PSDB há 16 anos e agora com direito à prorrogação - uma das pós-graduandas, professora da rede particular, declara que vai votar em Serra porque não quer que o PT “ganhe a eleição de lavada”.

Talvez pelo lugar conquistado social e academicamente, talvez por certa expectativa de discernimento e profundidade no debate político que esperamos dos profissionais da educação, o fato é que me surpreendeu ainda mais ouvir essa professora afirmar que seu voto seria para Serra não por gostar do PSDB, partido que não a agrada também, mas por não gostar do PT.

Ora, apesar de haver ainda professores que inexplicavelmente votam em Serra, o território da educação pública seguramente não é o mais favorável à defesa do governo tucano, se é que há algum que o seja. Por conta disso, não preciso dizer que as manifestações indignadas se encorparam e, numa investida conjunta pró-Dilma, tentamos demonstrar a inconsistência política desse discurso, sugerindo a essa professora que, nesse caso, votar nulo seria o mínimo para demonstrar coerência.

Pois bem, desde a semana passada, é possível notar aqui pelas bandas da Educação um clima de investida mais acentuada por parte de todos os que não querem o PSDB e Serra à frente da presidência. Logo no início da semana encontrei uma colega com adesivos de Dilma que, enquanto dividia alguns comigo, afirmava sobre a necessidade de que fôssemos mais incisivos ao demonstrar nossa opção no segundo turno porque, segundo ela, “estamos muito quietos” e talvez, devido a isso, percamos terreno para os que se dizem do bem.

Em encontro no final de semana com duas grandes amigas, também professoras, para uma sessão do uruguaio Gigante e do nacional Pro dia nascer feliz, também não faltou o momento segundo turno das eleições, momento em que uma delas comentou sobre um colega que tinha colocado como meta ganhar 5 votos por dia para Dilma.

Sem dúvida, tal meta exige muito esforço e energia, mas talvez não seja assim tão mais trabalhoso do que discutir e problematizar com alunos e colegas professores em busca de um debate mais orgânico sobre as relações entre política, economia e sociedade na história brasileira, tarefa de que elas têm se incumbido diariamente em sua profissionalidade.

Eu mesma tenho me surpreendido em inúmeros momentos incentivando amigos a não deixarem de votar com vistas a evitarmos perder valiosos votos nessa etapa final das eleições.

Usando um termo bastante apropriado ao momento, eu diria que, de maneira relativamente ampla, esse fervor sobre Dilma ser a melhor opção para o segundo turno surge menos de uma certeza: querer Dilma Presidente e mais de algo que não se tem dúvida: não querer Serra Presidente.

De fato, parece consenso que chegamos em um momento político no qual é necessário deixar de lado - por ora, é importante ressaltar - discordâncias, críticas e reservas ao PT e à Dilma, com o objetivo de unir forças para algo maior: não eleger Serra para presidente juntamente com o projeto PSDBista de governo bastante neoliberal e conservador, embora maquiado e travestido de socialmente justo, progressista e do bem.

Nesse sentido, é interessante observar a maneira como a opção por Dilma foi se construindo e se delineando ao longo dessas eleições. Pois bem, ainda que o PT não seja mais tão representativo de uma opção político-ideológica de esquerda como foi até alguns anos, há um entendimento entre diferentes grupos de que os interesses dos cidadãos estarão melhor representados com Dilma frente à disputa com o PSBD. Há consenso de que não se quer o PSDB governando o Brasil.

Por outro lado, observe-se como é diferente o movimento que aglutina os grupos que votam Dilma e Serra, grupos estes que poderíamos entender como esquerda e direita, ou pelo menos mais à esquerda e menos à esquerda.

Enquanto os que não querem Serra Presidente - por algumas razões citadas aqui, dentre tantas outras - juntam forças para tentar eleger Dilma e, independente das divergências entre si, com o PT e com Dilma, formam um coletivo pró-Dilma, muitos dos eleitores de Serra não formam um coletivo pró-Serra mas um coletivo anti-PT. São grupos que votam Serra menos por acreditarem no projeto político do PSDB e mais por não quererem o PT governando.

Talvez a seus olhos de leitor atento essas duas perspectivas de escolha soem idênticas, porque ambas estão focadas na não escolha do candidato concorrente. Contudo, é interessante observar que muitas pessoas que se utilizam do discurso “PT e PSDB são a mesma coisa”, curiosamente, vão votar no PSDB. Ora, se são a mesma coisa tanto faz votar em um quanto em outro. Equívoco! Essa lógica não funciona numa eleição, visto que votar em um dos candidatos significa fazer uma escolha, portanto, a única forma coerente de demonstrar que se considera os dois partidos a mesma coisa é votar nulo. Aliás, para quem realmente acha que PT e PSDB são a mesma coisa seria bastante digno e decente optar pelo voto nulo e deixar a decisão da eleição para quem acha que há diferença entre os dois partidos.

O fato é que ainda não vi ninguém que vai votar Dilma defender que PT e PSDB são a mesma coisa, ainda que com críticas e divergências ao PT.

Talvez seja por isso que, enquanto a cada dia mais e mais pessoas expõem acintosamente adesivos de Dilma no carro, na bolsa, na camiseta, no capacete, na moto etc., buscando visibilizar com veemência sua opção - outro dia vi um carro que tinha adesivos grandes de Dilma em todos os vidros e ainda uma bandeirinha! - os eleitores de Serra restringem-se, pelo menos aqui na Educação, a uma opção silenciosa, que se exime do debate político de idéias limitando-se ou a provocar os eleitores de Dilma e, especialmente, os militantes petistas, ou a expressar sua opção anti-PT.

Manifestação de professores em greve. São Paulo. 2010.
Quanto a muitos que votam conscientemente em Dilma, finalizo justificando essa escolha com uma frase de uma educadora muito querida que trabalha comigo e que expressa bem a diferença que representa optar por um ou outro candidato nesse segundo turno. Disse ela “o Serra a gente vence nas urnas, a Dilma a gente vence nas ruas”.

Considerando-se a forma como Serra prefeito e governador de São Paulo tratou as reivindicações e manifestações dos professores da rede pública, com polícia armada e impedimento de passagem até de professores que precisavam de socorro e que tinham sido feridos pela própria PM, é de se esperar que não seja possível qualquer tipo de diálogo quanto a divergências e encaminhamentos para a política nacional, o que, felizmente, não tem se delineado da mesma forma nos governos do Partido dos Trabalhadores.

Nesse sentido, não dá mesmo para falar que PSDB e PT são a mesma coisa. De fato, é preciso ponderar que, no caso de PT e PSDB, uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa.

domingo, 10 de outubro de 2010

Gigante, de Adrián Biniez

Para comemorar meu décimo texto no blog - já falei aqui antes que sou coruja - resolvi escrever algumas impressões sobre o filme uruguaio Gigante, primeiro longa do diretor argentino Adrián Biniez.

O filme é de 2009, mas assisti semana passada na Mostra Cinusp - Para Gostar de Cinema 2006 a 2009 (vale dizer, ainda em cartaz) e achei o filme excelente. Premiado pela crítica no Festival de Berlim e em Gramado com prêmios de melhor roteiro, melhor diretor e melhor ator, além de levar o troféu especial para inovação cinematográfica, é possível encontrar inúmeros comentários e artigos elogiosos ao filme e ao personagem de Horacio Camandule, o segurança Jara.

Mais homogêneos que as indicações sobre o gênero do filme, que vão da comédia à comédia romântica e ao drama - os comentários sobre o personagem Jara giram em torno de seu romantismo, contrapondo o fato de ele ser um “sujeito grandalhão” ao de ter “um coração sensível e apaixonado”.

Encontrei até um artigo que dizia, a propósito dessa contraposição, que os brutos também amam, embora à maneira deles.

Mas que maneira seria essa? Mais que um romântico, Jara é um sujeito íntegro, de bom caráter, sensível e bacana. E mesmo com essas características de um típico “gente boa” não deixa de ser bastante agressivo em algumas situações que exigiram - ou nas quais ele quis demonstrar - sua força e/ ou sua raiva.

Talvez Biniez nem tenha pensado nessa questão ao criar o roteiro, mas acho que foi o filme mais não machista que eu já assisti. Ainda estou tentando lembrar de outro e não consigo. Para mim essa é a grande sacada do diretor em relação à criação do personagem, com fortes características convencionalmente associadas ao feminino, tais como a sensibilidade, a doçura e o romantismo, e absolutamente convincente em sua masculinidade.

A associação desses traços em homens à afeminação não é incomum e, muitas vezes, para reforçar o rótulo de afeminado são acrescentadas palavras de mau gosto bastante machistas tais como maricas, mariquinha, mulherzinha e coisas do tipo. No caso de Gigante, acho praticamente impossível que alguém associe Jara a algum desses xingamentos, não apenas porque ele é agressivo, aliás, é um equívoco bastante comum achar que homens com traços ditos afeminados não são agressivos.

Considero que essa é outra sacada incrível do não machismo de Gigante: não me parece que a constituição do masculino de Jara esteja essencialmente marcada pela agressividade ou pela força, há momentos em que isso aparece mas não considero o ponto central que faz sua masculinidade inquestionável. Para mim isso é demonstrado na coerência dessa constituição masculina, por sinal genial do diretor, em que através de inúmeras e sutis situações ele vai nos apresentando a personagem em suas contradições.

Assim, ao mesmo tempo em que Jara está interessado em saber o desfecho do encontro de Júlia, perde o casal de vista num momento tenso do jogo do futebol, que prende sua atenção. Ao mesmo tempo em que expulsa 2 sujeitos briguentos da danceteria onde trabalha demonstra preocupação com o cara que estava sendo achincalhado pelo outro. Ao mesmo tempo em que obriga o sobrinho a seguir Júlia junto com ele depois brinca com o garoto de luta de espadas.

Essas são algumas das situações que, no meu entendimento, contribuíram para a genial constituição não machista do filme e de Jara, um sujeito que teria tudo para ser um tipo de machão, não apenas por seu tamanho e força, mas por estar vinculado a um universo de pouca polidez e delicadeza. Ao contrário disso, o diretor Adrián Biniez conseguiu transformar um cara simples, com pouco estudo e poucos recursos num Gigante.
 
Há muitos outros elementos que fazem com que o Gigante seja imperdível para quem gosta de filmes excelentes, desses que nos deixam arrebatados com tamanho encanto e emoção, mas reservo-me aqui o direito de deixar que vocês os descubram por si próprios.
 

Gigante, direção Adrián Biniez, Uruguai-Argentina-Alemanha-Espanha, 2009, 90’.




Sites consultados:

http://cinema.uol.com.br/
http://www.estadao.com.br/
http://www.tripcult.com.br/

domingo, 3 de outubro de 2010

Carro zero tem seta?

Bem, é possível que esse título seja injusto com aquelas pessoas bem educadas que dirigem carros mais novos no trânsito paulistano. Concordo que talvez seja uma interpretação polêmica, mas à luz de um discurso bastante disseminado por aí, no qual os chamados pobres é que são sem educação, acho aceitável ter maiores expectativas de boa educação quando as possibilidades de acesso a ela são maiores. E não dá para dizer que quem dirige um carrão é sem educação por falta de oportunidade ou de acesso.

Na verdade, não acredito que o problema seja somente falta de boa educação, daquela que ensina a respeitar o outro e não querer se dar bem a qualquer custo. O que me parece é que carros caros não andam sozinhos e, dessa forma, muitos dos que tem um desses possivelmente tem um tanto de outras coisas que os fazem se sentir mais e melhores que nós mortais. Talvez isso explique a falta de respeito com que muitos Hyundai, Corolla, Vectra, Audi, Honda Civic etc. andam por aí, ultrapassando e mudando de faixa perigosamente e enfiando seus potentes motores em qualquer espaço possível sem uma sinalização básica, obrigatória por sinal.

É bem verdade que um trânsito abarrotado como o de São Paulo está também abarrotado de motoristas folgados, mas tenho sempre a impressão de que quanto maior e mais novo o carro mais folgado é seu motorista. É possível, evidentemente, que eu esteja enganada e essa proporcionalidade só chame tanto minha atenção porque normalmente são carros que, por seu tamanho e belezura, chamam mesmo a atenção de qualquer pessoa.

O fato é que tenho pensado que há coisas que o trânsito provoca que me levam a crer que mesmo pessoas gentis, solidárias, generosas, muitas vezes até religiosas, altruístas e que querem o bem do próximo não estão livres de sentimentos e atitudes vergonhosas quando estão à frente de um volante no emaranhado de carros de uma metrópole como São Paulo.

Vejam, estou bem longe de ser alguém com tantas qualidades, mas observando certos sentimentos que tenho quando dirijo por São Paulo comecei a refletir sobre o porquê e o que representa chegarmos a esses sentimentos que em nada orgulhariam uma pessoa de bem. Vejamos algumas situações.

Em geral sou uma pessoa tranqüila, até simpatizante da convivência amistosa, mas quando no trânsito, freqüentemente sou envolvida na teia da famigerada competitividade. Mas não é intencional, o que ocorre são situações como quando você está vindo na faixa da esquerda, no limite de velocidade, aí vem aquele sujeito impaciente - que se estivesse na rodovia jogaria farol alto até você sair. Como na cidade não dá para fazer isso ele ultrapassa você pela direita acelerando de tal forma a deixar claro a impaciência dele, como se estivesse no direito de dar bronca em você. Bom, quando logo à frente eu vejo que ele ficou parado no farol, numa fila de carros ou atrás de um caminhão e minha faixa me permite seguir tranqüilamente, é bom que se diga, dentro do limite de velocidade, não resisto àquele risinho interno.

Há também aquela situação em que você está se aproximando de um farol fechado, não há nenhum carro à sua frente, mas de repente alguém sai de uma faixa e entra na sua frente, afinal, todo mundo pára o carro atrás da fila que está menor. O povo não sossega, é muito chato, e aí quando de repente a outra fila em que o sujeito estava antes de mudar anda mais rápido que a atual, novo risinho, afinal, quem mandou ficar mudando o tempo todo de faixa? Não faz tanta diferença.

O pior é quando você está numa ladeira bem íngreme esperando para cruzar uma rua de duas mãos e aí vem aquele infeliz com seu carro potente se achando o esperto e quer te ultrapassar pela direita passando pela sua frente. Acho quase impossível não sentir ódio de um sujeito que faz uma coisa dessas, assim como daqueles que não deixam você fazer um cruzamento sendo que vão parar logo em frente porque o farol está vermelho ou, o pior e mais insensível, quando o trânsito está parado e você está esperando para entrar na via e ninguém deixa. Ou seja, tanto em uma quanto em outra situação o sujeito vai ter que parar 1 metro adiante mas não pode parar um pouquinho antes para deixar você passar ou entrar na fila de carros. Isso que é solidariedade! Acho impossível não vibrar muita raiva a uma pessoa que tem uma atitude dessas.

Mas o que mais me envergonha é o sentimento gerado quando estou em uma curva acentuada próxima da minha casa, local que dificulta muito a visão e no qual há um ponto de ônibus. Os ônibus não são abundantes na periferia mas, às vezes, acontece de haver um na sua frente, e aí surge aquele indivíduo que decide ultrapassar todo mundo invadindo a outra faixa totalmente sem visão por estar numa curva. Nessa hora não consigo não pensar “ah, se ele desse de cara com um carro”. Não, eu não gostaria que o cara batesse, até porque ia prejudicar alguém teoricamente inocente, mas que seria uma lição se ele tivesse que voltar para a faixa correta com o rabinho entre as pernas, ah, sim, isso tenho que admitir que passa pela minha cabeça de motorista patológica.

Por causa dessas e outras paranóias e chatices minhas sou freqüentemente associada pelos meus àquele personagem do Pateta, Sr. Walker, homem comum de hábitos estranhos e peculiares; na verdade, um senhor de bem que quando está ao volante muda completamente sua personalidade. É possível que eu não seja mesmo um exemplo de paciência e tolerância no trânsito, embora ache que há uma grande diferença entre fazer coisas desrespeitosas e não ter paciência com quem as faz. Mas tenho me esforçado e essa reflexão parte desse esforço, afinal, penso que se deixar influenciar por essa energia tão competitiva, intolerante e pouco educada que circula no trânsito de São Paulo não há de fazer bem a ninguém, nem a pessoas constituídas de acidez, pouco açúcar e muito sal como eu.
 
http://www.youtube.com/watch?v=cfnrHz_gM20

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

"E agora eu vivo dentro desta jaula"


Imagem extraída de www.curiosidadesdeana.com
A idéia para este texto surgiu dia desses quando, depois de esperar durante mais de 40 minutos por uma das linhas Butantã-USP, entrei em um ônibus da linha Butantã na Praça da Sé. Ônibus espaçoso, confortável, bem diferente dos que cobrem a região do bairro onde moro, na periferia da zona oeste. Outra diferença impossível de não ser notada: uma TV dentro do ônibus.

Primeiro me veio aquele incômodo que sempre tenho quando entro em um espaço público com TV - entenda-se espaço público aqui como um lugar que não é a sua casa, freqüentado por diferentes pessoas que não tem, necessariamente, relação entre si.

Nunca entrei em lanchonete, restaurante, boteco, consultório médico privado ou público, banco, cartório ou qualquer outro lugar em que houvesse uma TV ligada e o tal do aparelho não estivesse ligado na Rede Globo. Fico me perguntando quem elegeu essa rede de televisão como inquestionável preferência nacional e, já que ninguém vai mesmo perguntar aos que estão esperando ou freqüentando o lugar o que gostariam de assistir, não entendo o porquê de não passar a programação de outro canal.

Nem estou falando de canais como, por exemplo, a TV Cultura; acho muita ilusão da minha parte imaginar que seria possível adentrar um consultório médico ou dentário especializado no atendimento a crianças e, ao invés de ver a tão didático-pedagógica Xuxa na TV, notar que o programa passando na Telona é o clássico Castelo Rá-Tim-Bum. Não, realmente isso não deve fazer muito sentido por aí.

Pois é, mas mais do que não haver questionamento sobre outras possibilidades de programação para o infeliz paciente (ou freqüentador ou cliente) também não há, aparentemente, questionamento sobre o porquê de TVs nesses espaços.

Talvez porque a TV já esteja tão incorporada ao nosso cotidiano quanto o fato de que teremos mesmo que esperar muito pelo atendimento e, assim, o que fazer enquanto esperamos? Leitura não parece fazer parte do hábito da maioria dos que esperam. Além do mais, depois de muita espera a leitura começa a não ficar tão atrativa, o sujeito começa a olhar o relógio e pode querer começar também a reclamar e, mesmo que não o faça, fica aquele clima incômodo no ambiente. Mas todo esse incômodo fica menos susceptível de ocorrer de fato se houver por ali, assim como quem não quer nada, uma chamativa TV, com tela plana, tamanho considerável e programação que todo mundo gosta.

E eu imagino que todo mundo deve gostar mesmo porque, como eu disse, não há quase lugar que se freqüente hoje em dia em São Paulo que não tenha uma Telona instalada em cada canto do recinto.

Agora, que essa estratégia tenha sido adotada porque é mais fácil fixar uma TV - para abestalhar quem está esperando horas por atendimento - do que oferecer serviços que se prestem a respeitar a dignidade do indivíduo até eu, que sou mais boba, consigo perceber.

Contudo, como explicar que em locais em que você vai para comer, para se divertir, para encontrar pessoas, paquerar, beber, para conversar! - como explicar que em cada um desses lugares você certamente encontre um desses aparelhos ligados nessa programação de alta qualidade de entretenimento produzida pela Rede Globo?!

É possível que você me responda que estamos num espaço (e mundo) plural e que, como tal, num bar ou restaurante sempre haverá pessoas com interesses diferentes, que estarão lá não só para paquerar ou conversar, mas que preferirão comer consigo mesmas enquanto assistem a essa programação de qualidade oferecida pelo canal em questão e disponível na TV ligada no recinto.

Mas minha questão é compreender como chegamos a algo tão aparentemente instaurado e aceito, quase como algo natural, em espaços tão plurais.

Seria a falsa necessidade de informação o tempo todo? Seria a incorporação da TV ao nosso dia-a-dia de tal forma que tenhamos que tê-la ligada em todos os espaços que freqüentamos? Seria a necessidade de ensimesmamento em que vivemos, nesse processo em que somos e vivemos centrados em nós e que não nos permite muito mais olhar e observar o outro nem o nosso redor? O que explicaria esse fenômeno das TVs em tudo quanto é lugar por aí?

O que me espanta é que eu mesma fico pensando que talvez meus questionamentos não façam sentido, o que, desse ponto de vista, me dá uma dimensão da natureza da gravidade do exposto aqui.

Pois bem, no início do texto falei que comecei a pensar nesse assunto a partir de uma experiência em um ônibus dia desses. Na segunda parte deste texto, vou complementar minha reflexão com algumas pesquisas que fiz sobre o que é conhecido no mercado como serviço de mídia móvel no transporte público de São Paulo e oferecido basicamente pela empresa de mídia em ônibus TV Bus Mídia.